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Retratos & Roteiros Sociais - Por Cassiano R. M. BovoVOLTAR

VANESSA SAMPAIO, UM ANO....

VANESSA SAMPAIO, UM ANO....
Cassiano Ricardo Martines Bovo
dez. 17 - 6 min de leitura
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“É uma rosa despida

 Uma rosa só ilusão

 É uma rosa caída

  No mundo da solidão

  É uma rosa desfolhada

  Pétalas a cobrir o chão

  Tráz a fronte inclinada

  No olhar lágrimas de emoção”

  (Rosafogo, Uma rosa)

 

Madrugada de 20 de dezembro de 2020. Rua Dr. Moisés Kahan, espremida entre a Av. Thomas Edison e a Marginal do Tietê, ladeada pelas pontes do Limão e Júlio de Mesquita Neto, região de prostituição de mulheres transexuais da Barra Funda (São Paulo). Yara Costa lá estava quando por volta das três da manhã um Fiat Uno branco parou; o motorista de aplicativo Vitor Costa Batista de Medeiros, 32 anos, perguntou sobre um possível programa. Em seguida Yara entrou no carro e dirigiram-se a uma biqueira onde Vitor comprou cinco pinos de cocaína. Foram para o Motel Fênix, na própria Dr. Moises Kahan; de lá saíram por volta das seis e meia. Vitor queria comprar mais droga; Yara recusou, viu que ele estava muito drogado e agressivo. Desembarcou. Vitor já tinha dito que queria sair com outra.

Na rua Yara rapidamente conversou com a Vanessa Sampaio e a Naomi Bittencourt. Em seguida Vanessa caminhou em direção à Av. Thomas Edison. O resplandecente conjunto cor de rosa que vestia contrastava com sua pele e cabelos negros até a cintura. Vitor parou o carro, conversou com Vanessa. Ela entrou; tornou-se a “outra” que ele queria sair. Já era dia claro; por volta das sete da manhã. O que aconteceu dali até dez e meia só Vitor sabe....

Quando o Fiat Uno entrou na Rua General Couto de Magalhães, no centro da cidade, Vitor pegou uma faca que estava na porta do carro e a enterrou ao lado do seio esquerdo de Vanessa; em seguida a empurrou para fora do carro, jogou a faca na rua e evadiu-se. 

Vanessa caminha para a calçada na altura do número 222; segue cambaleando. Um rastro de sangue foi ficando para trás; entrou na Rua Washington Luís. Bem tonta, ia perdendo a consciência e ziguezagueava. Caminhou um pouco mais, tateando a parede, como que à procura de um apoio. Finalmente voltou para o meio da calçada e, num último sopro de vida, voltou para a parede, encostou-se e deslizou para o chão, pernas dobradas para frente, pendeu a cabeça para o lado e tombou, barriga para baixo. Corpo estirado tomando quase que toda a calçada na transversal.

Era em torno de dez horas e quarenta minutos. Vanessa ficou deitada entre duas portas; a de entrada de um prédio, número 386, e a da loja onde se lia na placa “Central CLX”; do outro lado da rua, em frente, a Padaria Cascatinha. Caminhando em alta velocidade veio uma mulher em sua direção; pouco antes de ali chegar atravessou; em seguida um rapaz de bermuda passou ao lado e nem olhou. Em direção contrária, outro faz a mesma coisa. Nem ligaram para Vanessa, ali caída, conjunto cor de rosa contrastando com a dureza do chão da calçada e da vida trans. Talvez, na correria dos afazeres e compromissos do dia a dia, pensaram tratar-se de mais uma das pessoas largadas na rua, como é comum na região; ou, eu diria: em quase toda a cidade. 

Só então, duas mulheres, percebendo do que se tratava, chamaram por socorro. Dois guardas municipais acionaram o SAMU que chegou por volta das onze horas. Tentaram a ressuscitação; o óbito foi constatado às onze horas e quatro minutos. Terminava ali a vida daquela maranhense de apenas vinte e dois anos, mais uma dentre as tantas mulheres trans assassinadas no país.

Mais tarde veio a perícia. Ao virarem o corpo de barriga para cima se destacava o buraco da facada ao lado do peito e a enorme crosta de sangue sobre a negra pele. Já ali aventou-se tratar de um ferimento perfuroinciso na região torácica esquerda, o que foi confirmado pelo exame perinecroscópico posteriormente realizado. Entre as duas pernas um par de botas pretas de cano longo que Vanessa vinha carregando na mão. No ombro direito, a alça da bolsa preta acomodada na região do seu cotovelo e onde se lia “Schutz”. Pelo mesmo ombro esparramava-se uma tatuagem de rosas vermelhas com nuances em preto e verde que deslizava pelo seu braço; a partir do cotovelo, nova fileira de rosas, agora em preto com mesclas da sua cor da pele. Quando tiraram o vestido e a calcinha, também cor de rosa, viram a sequência de tatuagens que se iniciava do lado direito do abdômen, entrava pela região da nádega e terminava pouco antes do joelho: borboletas, rosas, dragões, ora separados ora misturados em tons vermelho, verde e preto. Dentro da bolsa recolheram 72 reais, um envelope de preservativo parcialmente rasgado, ainda sem uso, um tubo de lubrificante, dois pentes brancos de plástico e uma cartela de comprimidos do medicamento Buclina (dicloridrato de buclizina).  

Vitor deixou muitos rastros, ele e o carro foram filmados no Motel Fênix e nas ruas da região central de São Paulo, o que foi utilizado nas investigações e embasou o indiciamento por homicídio doloso. Facilmente chegaram à sua casa e o prenderam em quatro de janeiro 2021, quando foi interrogado. Decretada sua prisão preventiva, em onze de janeiro deu entrada no Centro de Detenção Provisória Belém I. Em 25 de fevereiro foi transferido para o Centro de Detenção Provisória Pinheiros III.

Em seis de agosto ocorreu a primeira audiência de instrução e a próxima está marcada para dez de janeiro de 2022.

No perfil do Facebook de Vanessa Sampaio, há uma postagem feita em 31 de dezembro de 2020 por Agripino Magalhães onde se lê:

“Por ser Trans, eu fui embora e eu não voltarei mais, cuidem do meu corpo, façam justiça para que eu descanse em paz.

— Em memória de: Vanessa Sampaio,

assassinada brutalmente.

Pela vida das pessoas Trans, e LGBTI+”.

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