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Retratos & Roteiros Sociais - Por Cassiano R. M. BovoVOLTAR

Margot

Margot
Cassiano Ricardo Martines Bovo
mar. 15 - 5 min de leitura
010

Cair da tarde no centro de São Paulo. Eu estava indo para casa e a região da Rego Freitas entrou no percurso. Na esquina com a General Jardim, me surpreendi; olhei bem. A Margot lá já estava. Não era noite ainda. Ela disse que chegou cedo porque estava dura, o movimento andava muito fraco e que não fazia programa há dois dias, mesmo ficando a noite toda (atenção: isso se deu antes da pandemia).

Ela pediu para eu pagar uma refeição e fomos ao boteco na esquina; entramos e nos acomodamos numa mesa – dentre as poucas – colada à parede. Enquanto tomávamos uma cerveja, Bruna e Cris chegaram e foram para uma mesa próxima. Quando eu falava com Margot sobre os riscos que se corre na madrugada - muitas vezes estando sozinha -, como se a conversa de uma mesa cruzasse com a da outra, Bruna comentou que anda com uma faca na bolsa, por precaução. Ela argumentou que se não se defender, quem o fará?

Por falar em violência, a Margot mesmo, alguns meses antes, ficou dias com um horrível hematoma na face. Ali mesmo, do outro lado da calçada, foi pega de surpresa. Do nada, sem mais nem menos, surgiu uma travesti “maluca”, segunda ela, que a derrubou. Uma vez caída, a agressora lhe desferiu um golpe no rosto com o cabo de uma faca.

Chegou o PF; arroz, feijão, bife e batata frita. Eu nada pedi, já tinha comido nas andanças pelo centro. Apenas fiquei vendo Margot avidamente fazer a refeição, fome mesmo. Olhei para o lado, para cima. Na parede, perto de nós, uma pequena barata fazia o seu passeio noturno; para baixo, no chão, a sujeira se esparramando.

Falamos sobre o fraco movimento, as poucas travestis num lugar em que “fervilhava” tempos atrás. Incrível contraste. E a rotatividade, muitas novas e jovens aparecem e logo somem. Margot ali fincou raízes e já viu e vivenciou muitas situações. As travestis dizem que na região da Rego se ganhou muito dinheiro em meio ao intenso movimento; carros parando, um atrás do outro, levando-as para os programas. Tudo mudou depois da crise de 2008. “As coisas nunca mais foram as mesmas”, costuma dizer Margot.

Ela foi uma das que ganhou muito dinheiro; comprou um carro, que um dia ficou destruído numa batida, nos embalos da bebida e da droga. Grana entrando e saindo rapidamente (zero de capacidade de poupança). Hoje Margot mora longe e de favor, em casa de parentes, lutando contra as recaídas da droga e da bebida. Ela fica louca da vida porque um cliente (talvez o único) que lhe paga muito bem, exige que ela fique cheirando junto a ele, noite adentro. Às vezes nem transam; ele tem o prazer em vê-la usando a droga, fato que costuma ser relatado por outras travestis. E Margot precisa do dinheiro. Ela reclama também – como muitas – que os homens só estão querendo dar. Algumas gostam, ela odeia.

Assim que Margot terminou o jantar, na esquina do outro lado da rua, já postadas estavam duas travestis, e outras duas na calçada da General Jardim; ela olhou e disse tinha que trabalhar. Acertei com o atendente do bar, indivíduo mal-encarado e que parece que não gosta das suas clientes. Me despedi, caminhei pela Rego em direção à Major Sertório; na esquina, diante do Elenice (tradicional bar em frente ao Hotel Kalipha), três travestis jogavam conversa fora; uma delas, a Aline, pediu para eu pagar um lanche; eu disse para deixar para outro dia. Perguntei a elas como anda o movimento e a resposta é a mesma: muito fraco; e Aline disse “hoje tem que ser buceta porque eu tenho que pagar o aluguel”.

Atravessei a rua e entrei na Major em direção ao Copam (enorme condomínio residencial, projeto arquitetônico de Oscar Niemeyer, que se destaca na paisagem verticalizada do final da Avenida Ipiranga). Encostadas à parede lá estavam duas travestis; uma delas, dona de um “corpaço”, me fez a usual pergunta: “vamos fazer um programa?” Fugi da tentação, ao menos naquele dia, e pouco tempo depois estava em casa.

 

 

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