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O PANO AZUL

O PANO AZUL
Laurinda Ferreira
ago. 30 - 3 min de leitura
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Num repente, o vírus acabou com a pouca liberdade que o meu corpo ainda me permitia.

Deixei de poder ir à Faculdade e de ver gente. De espantar a solidão. Deixei de poder aprender de viva voz e de me aconchegar nas migalhas de calor humano que as aulas me ofereciam. Até as compras semanais, com ar fresco ou sol, foram substituídas pelo telefonema para Junta de Freguesia, que caridosamente me trazia o possível, uma vez que o que desejava não estava disponível nas cadeias solidárias que se formaram.

Um dia coloquei um pano de cozinha azul nas costas de uma cadeira, porque teimava em não secar à mesma velocidade da minha necessidade de lavar as mãos obsessivamente. A cadeira tem costas de metal, em arco, e o pano não conseguia obedecer ao meu desejo. Teimosamente, recoloquei-o lá, vezes sem conta, com o mesmo resultado: mantinha-se alguns momentos e depois deslizava langorosamente para o chão.

Dei por mim a falar com ele e a aproveitar os agachamentos a que me obrigava para movimentar o corpo, confinado a um espaço tão reduzido: cinco passos no corredor estreito, mais cinco em sentido contrário, e estou novamente na cozinha onde o pano mora.

Comecei a sentir-me grata pela contracena que o pano azul me oferecia. Comecei a falar com ele – e comigo, rindo-me de mim – e a acarinha-lo sempre que caía. Quando estava seco, deixava-o voltar para o cabide habitual, lá mais alto, donde tudo podia observar. Do meu minúsculo quarto conseguia vê-lo, pela nesga que a conjugação das duas portas formava. Entre a minha cama e a cama dele, na cozinha, apenas sete passos.

Quantos passos conseguirei dar dentro de mim?

O meu confinamento é cumulativo. Prisioneira num corpo que não acompanha a mente, vivo há mais de uma década prisioneira em casa. Espanto-me, agora, dos que antes nem tentavam ouvir-me e agora tanto se lamentam. Impacientes, desperdiçam os dias, à espera que passem. À espera que a cruel realidade que nos acompanha os dias desapareça por encanto. Alguns nada fazem para que isso aconteça. Os seus egos sobrepõem-se à necessidade - que este vírus veio evidenciar - de protecção do próximo, como a si mesmo.

O pano azul ali está. Pronto para ser o antagonista que poderá alimentar o cérebro na sua necessidade premente de criar histórias para sobreviver. Para que as pequenas luzes, cá dentro, continuem a piscar, sem se fundir.

Confinamento? Foi preciso um vírus, para que a palavra ganhasse dimensão. Mas qual é a dimensão dos confinamentos a que o envelhecimento do corpo nos conduz? Quem dará nome e dimensão à solidão da velhinha do quinto andar, que perdeu tudo e todos, e já só espera «que Deus a leve»?

30-08-2020

 


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