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NEM SEMPRE FUI ASSIM

NEM SEMPRE FUI ASSIM
Mari De Miranda Coutinho
dez. 4 - 6 min de leitura
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            Há algo de positivo na mudança. O novo imperativo parece não ser mais ganhe muito dinheiro. O imperativo em meio à tragédia pandêmica é seja feliz.

            Imagino que essa felicidade também não mais diz respeito ao individualismo tecnológico ou às redes sociais da era da farmacopeia contra a tristeza.

            Essas contradições desaparecem quando penso que ser feliz junto aos amigos e familiares não é mais um quadro obrigatório, mas uma necessidade física e psicológica de realmente compartilharmos a vida.

            Neste novo mundo em que olho muito mais vezes no espelho para me enxergar como pessoa, surge-me a questão básica que não sei responder: quem realmente sou quando estou sozinha, ou com outras pessoas? Uma pergunta que passou despercebida em minha vida antes de iniciar a pandemia, e agora o isolamento e o tempo que ganhamos em troca, faz-me refletir sobre o novo. Sobre uma nova conexão comigo mesma e com o universo. Já não me conecto mais com grupos instáveis ou vulneráveis ao covid. Ao contrário, passei a  conhecer uma rede apropriada para desvendar o mundo novo, sobre condições seguras para viver.

            Shakespeare escreveu a peça ¨A Tempestade¨ que conta sobre a ilha comandada pelo poder do duque Próspero, onde seres mágicos como Ariel produzem ilusões como fazer crer que existe uma mesa de banquete onde não há. A filha do duque, doce e ingênua, ao ouvir falar de lugares além do seu isolamento insular, pensa no ¨maravilhoso mundo novo¨ que ela ainda desconhece.

            Penso que hoje, olhar para o espelho e para o mundo ao redor são duas ações difíceis pelo fato de que a pandemia modificou nosso interior e somos indecifráveis, do mesmo modo que mudou as sociedades ainda em processo de reconstrução.

            Passei, na verdade, a observar muito mais as discriminações sociais que se acentuaram nesta crise sanitária e a perceber, por exemplo, que a mulher, especialmente, mesmo com habilidades administrativas, artísticas, literárias, tecnológicas ou musicais, ainda enfrentam dificuldades para expressar seus talentos e competências, tanto pela reafirmação da misoginia, quanto pela falta de tempo em razão do trabalho árduo junto aos familiares. Pode-se assegurar, portanto, que as mulheres, embora estejam com atividades remotas disponibilizadas pelas empresas, continuam reféns das lidas domésticas.

            Assim, acredito que a solidão pessoal que o isolamento nos impôs, ajuda-nos a refletir diante do espelho sobre nossas imperfeições sociais enquanto cidadãos e, sozinhos, somos acometidos por nossas próprias limitações. O mundo novo reside neste flagrante: o confronto conosco mesmo. Sem isso, a imaginação sobre uma sociedade ¨perfeita¨ se torna semelhante a uma peça de teatro.

            Neste sentido, a reflexão pessoal deve ser uma conquista, um esforço para evitar o excesso de barulho interno e externo.

            A solidão produtiva nos faz perceber a diferença, a chamada alteridade e os desafios que os outros nos apresentam. Apenas na frente do espelho eu consigo um período mínimo de distanciamento para redescobrir quem eu sou e, acima de tudo, quem eu não sou. A pandemia nos deu esse privilégio ao mesmo tempo que nos assusta com as exigências de um novo comportamento cultural e de um novo olhar sobre as políticas sociais que descobrimos neste tempo doentio, insuficientes.

            O isolamento compulsório me fez fugir de um mundo incômodo, todavia estimulou-me a reencontrá-lo em breve como a imaginativa filha do duque, da peça de Shakespeare, que somente fantasiava uma certa realidade sem de fato conhecê-la. A ilusão de percebê-la maravilhosa no pós-pandemia é, na verdade, o que alimenta nossa existência.

            O problema de existir a possibilidade de um mundo diferente que não conhecemos ainda, é de convivermos com uma certeza temporária. Deverá chegar um momento de lucidez ou mesmo de descoberta de uma mudança real, onde a ¨ilha¨ em que vivemos se torna insatisfatória e passamos a pensar em saídas para o continente das oportunidades, da igualdade e do conhecimento.

            A magia que comandava a vida da ingênua sonhadora, também nos envolve nesta crise mundial e joga-nos de um lado para outro em uma embarcação que não nos deixa chegar do outro lado conscientes. Quase não desconfiamos dos líderes que nos comandam e nada vislumbramos a não ser o ¨mundo maravilhoso¨.

            A minha solidão no campo das ideias e da imaginação, ultrapassa, em algumas situações, o oceano das ilusões e parece que chego com sensatez no chão das mudanças e inovações na nova terra. Constato, então, que a felicidade persiste. E ela está nos projetos de futuro e na perspectiva de mais partilha, porém há sempre uma tentativa e uma desconfiança. No momento, desconfio apenas do balanço do barco porque a ideia de realidade depende de uma pessoa para outra e as pessoas sempre acreditam na sua própria sensatez.

            Acredito na minha ilusão sensata e por que não nos amigos que esperam comigo o mundo harmonioso. As amizades que não se constroem de uma hora para outra, mas ao longo de toda vida, são as que nos dão a certeza da mudança para um futuro próximo porque apesar do desconforto do isolamento e da apatia, não estamos sós.

            Por isso, olhar-nos no espelho solitariamente é o inverso da solidão ou da fantasia sobre o que somos ou sobre quem são os outros. Todavia, é o encontro com a realidade próspera que só desponta quando a desejamos.

            Enfim, a solidão contraditória e contrariada pela sociedade moderna digital, embute em minha reflexão três aspectos: o confronto pessoal, a ilusão de um mundo fantástico e o compartilhamento das mudanças.

            Se me perguntarem quando comecei a pensar desta maneira, não saberei responder precisamente, mas sem dúvida, a pandemia que ainda nos assombra, contribuiu vigorosamente com essa viagem filosófica.

 

 

 


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