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Dissociação

Dissociação
Geovana Morais
ago. 22 - 5 min de leitura
010

Não era bom sair em tempos de pandemia

Uma desgraça que se alastrava pelo país, deusulivre 

Mas precisava comer e nada havia em casa

Saiu e então viu

Saiu de casa e de repente tudo era um rasgar 

Rasgo de um corpo outro quando se nasce novo

A vista tão bonita do igual 

Que não podia arriscar tirar sequer uma foto 

Era vazio, o cheiro de água, a falta de gente

A mesma passada rápida dos anos que aqui estava

Parou, e viu 

Será que iria lembrar dessa vista se não tirasse mesmo a foto?

Se esqueceria de certo desse dia e até dessa semana arrastada, singular...

Veio no caminho pensando nas vozes do fone que entravam escondidas 

A voz do Arnaldo Antunes parece que veio dos seus sonhos e leu os retratos de dentro

Chegou em casa, esticou as pernas 

Varreu a sala e como um criança entretida nas curvas do sofá e se perdeu no meio do dia

Talvez por culpa do cansaço 

Talvez por que já era difícil se aguentar nesse espelho mental, sozinho que ela vinha experimentando

E perdida no dia, se esqueceu da rocha densa que cabia perfeitamente em seu peito nos dias de dor

Era então assim que se esquecia dos fardos?

Esqueceu os sonhos

E depois que lembrou muito pior que esquecer, perdeu-os

Como se tivessem delicadamente dito “não lhe pertenço”

Porque tinha sonhos? 

Não lhe apetecia sonhar, confabular...

Esqueceu o amor da quinta série, e a senha do email, e o sabor preferido de sorvete, e o motivo de ter ido até ali e a fome, e o tesão, e as expectativas depositadas uma a uma sobre si mesma ao longo dos anos

E ali no chão da sala, deitada, perdida, sentindo a temperatura fria e a textura dura na espinha, de repente só lembrava daquele corpo físico esparramado no desencontro abalado de si.

Um “se” condicional, que só era possível frente as coisas todas, todas aquelas coisas que não eram “si” como o sofá, o chão, a voz do Arnaldo Antunes, a tv, a poeira, as paredes, seu cabelo…

Seu cabelo?

Como poderia ser que parte de seu corpo não fosse parte de si? Aquele corpo não muito jovem mas também não muito velho, queimado de sol, que ali era tudo que podia existir depois de tanto esquecer as quinquilharias. Era a ponte entre os pensamentos efêmeros e todo o resto. Era portanto a própria realidade, um casulo levemente desconfortável que só podia caber nela e único lugar a qual ela poderia caber.

Se não mais podia entender seus sonhos, se desejos não lhe permeavam e nem mesmo o medo lhe sacudia, a liberdade penetrava-a pelos poros num vento arrepiante.

O tempo estava congelado em seu interno, como se para ela não passasse, ela não era o tempo, e portanto estava permanentemente guardada frente ao externo passável daquele único e interminável universo. 

 

E num ato súbito necessário daquela cena amorfa que havia construído do dia, pegou com a mão desgrenhada em seus cabelos, tocava-os... sentia-os… puxava-os... e depois da sensação aguda no couro cabeludo. ARRANCAVA-OS.

Olhando pros fios arrancados em suas mãos. Num parto. Sentindo na pele o tufo elementar do que agora era externo, o que era ela mesma então? Se suas partes, suas células e até seu pensar eram uma incorporação do externo e vice versa. Não havia contra o quê lutar e essa afirmação lhe pesava densamente porque a luta é sempre alimento para quem quem não aguenta a ausência de limites para o sentido emergente da morte e da vida. 

Mas sabia que o fim dessa linha seria a aceitação do absurdo com tudo que lhe compete, já havia aceitado antes e era preciso aceitar de novo. A aceitação da luta contra o nada, a aceitação dos dias como se não fosse loucura o Sol nascer repetida e incansavelmente independente dos arrebentos e furacões que passavam dentro daquele corpo agora inerte, não dependia nem mesmo de nada do que acontecia naquele exato momento, não dependia de leito algum ou de vírus algum e toda a fragilidade da vida que se entregava à química e a física do Sol não faziam ao Sol a menor diferença. Aceitar de volta seus sonhos inúteis para que pudesse inutilmente buscar realizá-los, aceitar seu sofrimento só seu que não lhe tornava nada além daquilo mesmo, aceitar seu amor pelas coisas e pessoas,  aceitar qualquer sensação maravilhosamente deliciosa que já tivera sentido ao longo de sua vida ainda que nem mesmos estas possuíssem algum sentido. Aceitava o igual, o belo daquele dia a vista que não tirou foto e a rotina e as inúmeras mudanças que sofreria. Aceitava o inaceitável, o injustamente bizarro como quem leva o tapa e já espera pelo outro com fome. Aceitava o corpo e os fios caídos, a dissolução e o vazio. 

Viver a partir do vazio.

Na janela via a noite cair… O tempo já voltava a mover-se dentro de si também, não mais no transe do "si", mais ainda livre, sentiu o cheiro de queimado da cozinha.

Foi o tempo que queimou o arroz


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