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A COVID-19 aumentou ainda mais as vulnerabilidades das mulheres transexuais

A COVID-19 aumentou ainda mais as vulnerabilidades das mulheres transexuais
Cassiano Ricardo Martines Bovo
nov. 4 - 14 min de leitura
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“Costumo comparar a travesti a uma ilha, só que ao invés de estar cercada de água por todos os lados está cercada pela violência” (Janaína Dutra)[1]

Rubens é um funcionário da área financeira de um grande banco. Vive bem, pelos padrões da nossa materialista e consumista sociedade e se relaciona amorosamente com mulheres e, como muitos homens – senão a maioria –, tem atração por mulheres transexuais e realiza esse desejo por meio de programas sexuais.  

Mishely é uma mulher transexual que se mantém financeiramente fazendo programas, ralando nas ruas e por meio de sites de encontros para esse fim. Nessa condição, imposta à grande maioria delas, Rubens é um de seus clientes.  

Quando a Covid-19 começou a aparecer nos noticiários, Mishely, como a maioria das pessoas, não ligou muito e associou a algo distante, relativo à Ásia. A partir do momento que o fenômeno se tornou pandemia, ela começou a ficar preocupada; com o decreto da quarentena, foi paulatinamente sentindo os efeitos – para além da saúde – desse coronavírus, que, aliás, expôs cruamente aspectos da sociedade em que vivemos e que não nos damos conta na rotina do dia-a-dia, por exemplo, a nossa miséria social. 

No início da quarentena Mishely ainda fez alguns programas off-line (entendido aqui no sentido do contato físico, em oposição àqueles on-line, que utilizam recursos informáticos e telefônicos, tais como webcam, ligações etc.), mas a cada dia as ruas foram se esvaziando, os clientes escasseando, os contatos diminuindo. A partir de certo momento, ela não mais foi para a rua e lastimavelmente foi recusando programas – às vezes de alto valor – nas ligações que recebia. Os programas on-line se tornaram uma alternativa, mas não é tão simples, familiar e amigável para a maioria dos profissionais do sexo no Brasil, que, além disso, nem sempre têm acesso aos recursos tecnológicos necessários e não é garantia de ganhos equiparáveis à situação anterior. 

Por outro lado, Mishely tem as suas variadas despesas mensais, principalmente o aluguel. Muitas de suas colegas que moram em casas de cafetina passaram a ficar pressionadas por causa do pagamento das diárias. Uma parte das trans voltou para sua terra de origem, junto a seus familiares, algo que não é possível para ela, pois, como a maioria, foi expulsa de casa a partir do momento que assumiu sua identidade de gênero. E mesmo assim, aquelas que têm essa opção, muitas vezes vivenciam situações de estresse, uma vez que nem sempre os familiares são tolerantes, o que “ressuscita” velhos conflitos em relação às suas decisões, tanto que está circulando um vídeo do influenciador Samuel Gomes intitulado “Como sobreviver à quarentena vivendo com uma família que não te aceita?”.[2]

Há mulheres trans que continuam a fazer programas, variando muito de intensidade e de local a local, mas essas se encontram no “dilema total” exposto por Monique Prada, escritora e ativista (por exemplo, da Associação Nacional de Profissionais do Sexo): “Escolha de muitas é entre se contaminar ou passar fome”[3]. A Covid-19 nos leva à reflexão em relação a dois níveis de proteção: não só em termos sanitários (saúde), mas também, financeiros (sobrevivência). Para a maioria das mulheres trans (e profissionais do sexo em geral) realizar as duas simultaneamente não é fácil, geralmente precisando abrir mão de uma em detrimento da outra, o que tem levado à verdadeira rede de coleta de contribuições e distribuição de cestas básicas como apoio (veja-se, por exemplo, o Mapa da Solidariedade)[4]. 

Os mais variados abrigos e casas de acolhimento de transexuais espalhados pelo país, que antes já viviam às duras penas e impondo limites no acolhimento, agora se viram diante de assustadora demanda e estão abrindo completamente as portas, por ser último refúgio para muitas delas[5], mas às custas de superlotação onde as pessoas estão literalmente se amontoando, aumentando sobremaneira os riscos de contágio do coronavírus.   

As mulheres transexuais, neste momento, estão expostas a similar violência que as mulheres vêm sofrendo na experiência de isolamento, comprovada a partir de documentos e estatísticas recentemente publicados, isto é, reforço da já assustadora violência doméstica que cotidianamente sofrem. Além disso, as condições de saúde das trans (HIV, tratamentos e complicações hormonais e do silicone, além de outros problemas a que estão mais expostas) as forçam a frequentar hospitais e ambulatórios num momento de alto risco e sobrecarga do sistema de saúde (com implicações no contágio do vírus assim como impactando num atendimento nem sempre digno para as trans). E mesmo a situação de isolamento, muitas vezes, é difícil de lidar, o que tem levado à prestação de apoio psicológico por parte de algumas instituições (por ex. a Casa 1, em São Paulo). Como pontua o psiquiatra e psicanalista Bruno Branquinho:

“Os LGBTs, principalmente os em vulnerabilidade por questões socioeconômicas e pessoas trans, têm sofrido mais. Já sofriam bastante antes. Mas alguns dispositivos de ajuda têm sido tirados por causa do isolamento. Sejam organizações de apoio e mesmo a restrição de contato com grupo de amigos(…)”.[6]

Se, para Mishely, e a maioria das trans, a situação que se apresenta é a da proteção sanitária (uma vez que fiquem em isolamento) e a desproteção financeira, já para Rubens, a situação é bem diferente. Seu “lugar” na sociedade (ou sua condição social) permite que ele se proteja financeira e sanitariamente, pois teve a possibilidade de continuar a trabalhar em casa (home office). A falta das relações sexuais off-line, inclusive com Mishely, é problema, mas ele substitui por meio de recursos informáticos, assiste a filmes pornô etc. Neste momento Mishely se tornou desnecessária, dado que acabam sendo cinicamente valorizadas, em nossa sociedade, como objetos de consumo sexual. O costumeiro abandono agora se potencializou.  

O vírus não escolhe as pessoas (embora saibamos que se ele atacar aquelas com determinadas características de saúde, a sua letalidade é maior) mas tem as suas mais profundas repercussões a partir do “lugar” do ator social na sociedade, sobretudo em relação a três aspectos: os marcadores sociais (cor da pele, identidade de gênero e classe social/renda), local e condições de moradia, a atividade que realiza. Isso faz com que a proteção sanitária e financeira perante o vírus seja bastante diferenciada de pessoa a pessoa, principalmente considerando-se que o efeito contaminação por meio de quem veio do exterior já passou. De acordo com esse lugar social algumas pessoas se protegem (sanitária e financeiramente) melhor do que outras. As estatísticas vêm mostrando que o avanço nas regiões mais pobres do país é avassalador, assim como a maior letalidade das pessoas negras.   

A partir daí, podemos concluir que a Covid-19 pegou em cheio as mulheres transexuais porque a prostituição foi duramente afetada e, embora sem sabermos estatisticamente ao certo, a maioria delas encontra nessa atividade a sua sobrevivência. Enorme quantidade de serviços sociais, e seus prestadores, estão sofrendo, porém há algo diferente em relação à prostituição: não se trata de um serviço qualquer, pois é envolta por preconceitos, perseguições e tabus e, em meio a uma falsa liberalidade, sempre foi moralmente recriminada, cercada de polêmicas religiosas e tolerada como “mal necessário”, tanto que uma possível regularização/legalização dos serviços de prostituição não avança no Brasil, algo mais difícil ainda em tempos de avanço conservador.  

Se para as mulheres que se prostituem essas sempre foram questões difíceis de encarar, no caso das transexuais compreendemos que elas são duplamente atingidas. Por quê? Pelo simples fato do serviço prostituição trans ser realizado pelas mulheres transexuais. Sim, é isso mesmo, porque elas já sofrem o estigma da prostituição em si, como já dito, mais o preconceito, a discriminação, as violações e violências por serem trans, típicas do binarismo heteronormativo e da transfobia em que vivemos. E, nesse caso, há um agravante: não se pode tranquilamente dizer que elas escolheram a prostituição, pois, como sabemos, expulsas de casa logo cedo, alijadas do ensino, precisando de recursos para se transformarem etc., acabam tendo na venda do corpo, logo cedo, a solução de sobrevivência. Isso será uma marca em suas vidas e não é tão simples abandonar, sobretudo a partir do momento que se ganha mais dinheiro. Como afirmou a transexual Bia, em entrevista que realizei tempos atrás:

“Eu acredito que eu sou capaz. Às vezes as pessoas têm um pré-julgamento, assim, de uma pessoa de rua, como se ela gostasse, se não tivesse outra escolha. Mas eu acho que, no fundo, no fundo, se eu tivesse outra escolha eu ia opinar por essa outra escolha” (grifo meu).[7]

Conclusão: as mulheres trans sofrem um duplo estigma, o quem vem da transexualidade e o da prostituição; o que as tornam agora ainda mais descartáveis do que normalmente são.  

A desqualificação da prostituição das transexuais é muito bem exemplificada por meio de um caso ocorrido no bairro Bosque, na cidade de Campinas (SP), por ocasião do aumento do trottoir de transexuais na região, tempos atrás, e relatado por Letizia Patriarca. Os moradores, na ocasião, colocaram faixas com os dizeres: “Respeitem nossas famílias” e no jornal Interbairro de abril de 2004 se lê o seguinte: “No meio destes ‘fregueses’ existem pessoas de alta cúpula de empresas, órgãos públicos e federais que poderão ser flagrados por fotos ou câmeras de moradores mais revoltados com a situação e que prometem divulga-las pela internet”. De acordo com a autora:

“O intuito da notícia era alertar para o fato de que este é um bairro onde moram famílias com crianças e não local para prática libidinosa que se vê atualmente. Contudo, nesta notícia aparece uma dimensão nova, em relação à anterior publicação de jornal. Há uma crítica direta aos frequentadores ou chamados clientes, referidos também como fregueses, marcadamente entre aspas, que tornam-se inclusive alvo de ameaça. Por serem pessoas de alta cúpula, suas fotos poderão ser divulgadas na internet, causando assim vergonha. Essa mudança de alvo da crítica, pode ser explicada pelo fato de que são travestis que se prostituem. Ainda pensando em padrões idealizados de sexualidade, parece legítimo que homens busquem o que consideram mulheres para prostituição, mas não travestis. Como se ao buscá-las sua masculinidade fosse afetada e a prática que é considerada corrosiva (também ou mais) para travestis, contaminasse também os homens que as procuram; além, é claro, de afetar as famílias e crianças” (itálicos no original)[8].

O que se está, portanto, incriminando é o desejo pela travesti, envolto na já recriminada (embora tolerada, sobretudo para as mulheres) prostituição, o que torna a situação difícil para as mulheres trans (“Joga pedra na Geni”). E por que isso? Porque desde que o fenômeno transexual feminino se disseminou no Brasil, sobretudo a partir da década dos 1970, com a associação à prostituição, recaiu sobre as mulheres trans as marcas estigmatizantes da doença (distúrbio/transtorno psíquico[9] e o HIV, principalmente), criminalidade, perversão e pecado, que podem ser interpretadas como dispositivos da sexualidade, na perspectiva de Michel Foucault[10]. O resultado é esse que conhecemos: alto índice de suicídio e assassinatos, além de outras várias violências. 

Assim, quem sabe o embalo do coronavírus, para além das cestas básicas e as iniciativas da sociedade civil, não nos leve definitivamente a resolver essa ferida violenta e violadora, em nossa sociedade, em direção a políticas públicas que, de uma vez por todas, chegue à arquitetura social que dê condições dignas de vida para as mulheres transexuais, por exemplo: decente renda básica, sistema de cotas nas empresas, capacitação com inserção no trabalho formal, educação e ensino de qualidade e adequados à sua condição trans, visibilização da questão da identidade de gênero na grade de ensino das escolas (o que não é ideologia de gênero), valorização do SUS e as especificidades no atendimento às trans (inclusive as aplicações de silicone e colocação de próteses), proteção e melhor capacitação dos agentes de segurança pública, dentre outros. E que a luta e o debate reforcem a compreensão, o afeto e o acolhimento em momento tão delicado!

Cassiano Ricardo Martines Bovo é doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP e ativista de Direitos Humanos na Anistia Internacional Brasil.


Notas:

[1] https://mostravagnerdealmeida.wordpress.com/janaina-dutra/

[2] https://poenaroda.com.br/videos/assista-como-sobreviver-a-quarentena-vivendo-com-uma-familia-que-nao-te-aceita/

[3] https://ponte.org/escolha-e-entre-se-contaminar-ou-passar-fome-diz-prostituta-e-ativista/

[4] https://revistahibrida.com.br/content/uploads/2020/04/Mapa-da-Solirariedade.pdf

[5] Chama atenção o seguinte chamado: “Além disso, por iniciativa da ativista Indianare Siqueira, lançou a campanha nacional da Rede Solidária, para organizar ajuda aos abrigos LGBTIQA + em funcionamento no Brasil” (https://www.viomundo.com.br/voce-escreve/em-depoimentos-a-antropologa-elisiane-pasini-prostitutas-falam-sobre-o-trabalho-e-a-vida-em-tempos-de-covid-19-no-brasil-nos-existimos.html?fbclid=IwAR124y4qyqfed4u-WAnOVIwxxD5FPdfr6WfP-BfS_1NHxyacmCMYv9Eem2w).

[6] https://todasasletras.blogfolha.uol.com.br/2020/04/17/o-duplo-isolamento-de-lgbts-na-quarentena/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=newseditor

[7] http://www.justificando.com/2019/09/23/aconteceu-com-bia-trafico-de-mulheres-para-exploracao-sexual/

[8] PATRIARCA, Letizia. Pelo bairro: um exercício descritivo da prostituição de travestis no Jardim Itatinga. Revista PontoUrbe, 20 (1), 2017, p. 10.

[9] Apenas em 2019 a Organização Mundial da Saúde (OMS) deixou de considerar a transexualidade como transtorno mental.

[10] “Através deste termo tento demarcar, em primeiro lugar, um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos” (FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979, p. 244).

 


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